André Luiz Rodrigues Bezerra1
(…) O que é desejado (na relação como viver junto) é uma distância que não quebre o afeto (…) uma distância penetrada, irrigada de ternura (…). (BARTHES, 2003, p.260).
As jornadas de junho, os occupys, ocorridos em tantas cidades do mundo que foram amplamente cobertos por diferentes estratégias midiáticas, e toda a dimensão não totalizável do corpo, do espaço multitudinal, trazem para o (des)centro da discussão a coletividade cooperativa contra dispositivos de poder institucionalizados no cerne da nossa compreensão de política, ao mesmo tempo em que carregam junto com essa ventania tudo aquilo que também é idiossincrático, idiorítmico, parafraseando Barthes em seu “Como Viver Junto”.
Como afinal? Dentro de toda a construção corpo-a-corpo, midiática, auto-gerativa, obscena e micropolítica das coletividades desses espaços multitudinais vivem diferentes fluxos de subjetividade, tempos de experiências. Reafirmando a diferença da diferença, e a potência de uma dialética não totalizadora, como aponta Deleuze (1976) a partir de Nietzsche, mas estamos também adentrando um estranho território ético.
Estranho, mas pouco estranhado, pois se o discurso de representação midiático das grandes mídias nos diferentes países tentou a todo instante convergir as individualidades para criar uma massa de querer único, pouco talvez se discutiu amplamente sobre o fato sincero de não haver representantes legítimos da coletividade senão sua expressa emergência como coletivo.
Sem querer unificado, ou estrutura de atuação representativa de seus participantes, nas ocupações há aquele território, lugar de muitos, que bem recebe a todos, mas que ainda acorda para as éticas complexas que residem na multidão.
Estupros nas ocupações de Nova Iorque, brigas entre manifestantes que partem de outras táticas e que fazem black bloc, crimes de ódio envolvendo racismo e homofobia dentre as barracas dos ocupadores, e cada vez mais a pergunta: como os corpos da multidão conseguem ser corpo? Como se conhece o corpo do outro para viver junto?
Há risco na imprevisibilidade das éticas, e da mesma forma que a diferença permite as minorias, e/ou ao indivíduo, criar espaço de resistência, composição e articulação micropolítica, também abre em seu cerne lugar para aqueles que pensam em outro projeto para a coletividade da multidão.
Assim flutuaram e adentraram as ocupações lugares de um patriarcado branco, de dominação, de delimitação, preconceito e “orientação” quanto a gênero, pontas de homofobia e racismo no próprio corpo desejante dessas multidões que se levanta(ra)m. Um estranho fenômeno que misturou os sensos de multidão de que fala Negri (2004), uma multidão que também chamou os desejos obscuros de uma extrema direita não representada pelas instâncias políticas em questão a se unirem aos demais.
Assim, enquanto temos a presença de subjetividades interessadas na afirmação da diferença como princípio da experiência singular do mundo, temos também outras que afirmam a diferença pela tentativa de dominá-la e restringir a experiência do mundo, princípios similares usados para fins éticos absolutamente adversos.
Distintos indivíduos podem ter os mesmos problemas com hipoteca da casa, podem ter problemas com a discussão do uso e investimento com transporte público, podem discordar do modo como são geridos gastos públicos, podem estar insatisfeitos com a presença e influência de instituições bancárias no epicentro da ascensão e queda de representantes políticos, podem estar igualmente enfurecidas por uma crise sistemática dos modelos de gestão do poder público, e é na distinção desses indivíduos que podem compartilhar uma potência em comum que a multidão começou a auto examinar seu corpo para entender que processos estranhos ocorriam em sua existência. É desse estranho que me coloco hoje estranhado a falar.
Estranhado porque me vejo na posição de escrever sobre esse corpo que se dá, numa operação pornográfica, no sentido de que, como troca de afetos e de afetações, falo desse corpo-tantos-corpos da multidão que recebe o outro, que lhe permite o gozo que as dinâmicas que põe a vida para trabalhar, como coloca Pelbart (2003), interdita. Todavia, há uma complexidade nesse ato que não pode ser extrínseca, qual seja, a de que esse corpo que aos diferentes recebe, e deles se (per)faz, e a eles resguarda a potência de serem juntos e serem em si, está também aberto a ataques imprevistos de seus próprios princípios.
Como na performance arte, o corpo da multidão só se conhece em ação, pois parte do princípio de coletividade gerada pela reunião de indivíduos que se afetam uns aos outros na emergência de se perceberem num lugar de potência comum, muitas vezes efêmero e movediço devido a sua própria complexidade.
Com o crescimento das redes e tecnologias de informação e produção de conteúdo on-line, amplamente usados tanto para fazer ecoar a presença, assim como para coagir essas multidões de ocupação, é cada vez mais latente a percepção coletiva de que vivemos num tempo de muitos tempos, num tempo onde conceitos arbitrários descendentes e/ ou remanescentes de diferentes períodos do pensamento humano se fazem presentes junto a projetos push-boundaries que chamam para outros modos de criação e percepção da vida, nos espaços artísticos, educacionais, econômicos, ambientais, sexuais, culturais, etc.
As subjetividades que dão vida a multidão são corpos com distintos processos de experiência do mundo, muitos desses corpos optam, com mais ou menos percepção dessa ação, por diferentes projetos de vida ao manifestarem e darem impulso aos seus desejos, interpelados por questões pessoais, familiares, culturais, econômicas, e uma gama de outras possibilidades, que os levam a escolher essa forma de ser em detrimento de outra(s). Isso, como bem coloca Clóvis de Barros Filho (2010), é uma questão moral, não no sentido vulgarizado do termo que toma a moral como a implementação de valores intransigentes à vida de todos para que se chegue a “boa vida”, mas naquilo que se refere a escolha livre individual sobre que valores devem pautar as escolhas entre diferentes modos de viver a vida que se projetam diante de cada um de nós.
A questão ética influi mais complexidade sobre essa situação, pois fala diretamente da coletividade, da vida dividida com o mundo e suas outras formas de vida, fala dos modos que acordamos para viver juntos.
Nesse sentido, me pergunto de que diferenças falam/falaram essas multidões, talvez transformadas em outros projetos antes que se pudesse considerar esse ponto?
Percebam que não quero aqui acusar de nada as multidões que questiono, mas como muitos me encontro intrigado por esse modo de viver juntos no mundo, e ao mesmo tempo que olho os grandes cenários de colaboração profícua e revigorante que ocorreram dentro delas, não posso deixar de notar questões que reincidiram em seus interiores em distintos lugares do mundo.
Parece-me que antes é necessário pensarmos em ocupar o corpo, para pensarmos em ocupar a rua (que é corpo compartilhado). A diretora e atriz pornô Bobbi Starr, na ocasião dos movimentos occupy norte americanos, lançou um filme cujo título, mais ou menos intencionalmente, possui uma possibilidade filosófica preciosa para a nossa discussão. Ele se chamou: Occupy My Ass (Ocupe/Occupy Meu Cu)2.
É premente antes de tudo pensarmos o corpo, não afastado dele, nem concebendo o pensamento como força não incorporada, mas de modo a darmos cada vez mais a possibilidade desses corpos ocuparem a si mesmos.
Por que? Não porque teríamos uma homogeneidade de valores, ou para evitar a existência de divergência. Porque ocupar o próprio corpo é questão central para entender os possíveis modos de experienciar o mundo em si e no outro.
Como o respeito, a abertura a discussão, a aceitação ética da diversidade, também o ódio, a violência, o desejo por homogeneidade, são corpo, e nenhum corpo é em si, mas é no mundo, e com o mundo. Isto implica dizer que, num espaço de afetação contínua entre corpo e mundo em suas múltiplas idiossincrasias, são necessários outros projetos para ocupar a intersubjetividade, a economia, a cultura, a sociedade, as trocas, os dantescos monstros de carne, osso, estômago, sangue, desejo, necessidade e gozo que são as instâncias macropolíticas.
É necessário que comecemos a entender que essas coisas entre nós, essas vidas pelas quais optamos, ou nas quais somos lançados pelas condições contextuais, são carne entre nós, são gigantes de carne que nutrem e acionam as políticas do viver-juntos.
A busca pelos modos como é possível começar a modificar esses cenários usualmente tem se voltado justamente a ações micropolíticas, dos pequenos grupos, das ações localizadas, nas escolas, nos coletivos e grupos artísticos, nas pequenas redes de troca, nos workshops e oficinas, nos projetos autônomos de organização comunitária, nos projetos de planejamento familiar e educação sexual para a diversidade, todos com múltiplos fazeres que tentam dialogar com os diferentes tempos de experiências das subjetividades e contextos que tocam.
Embora possa soar violenta a alguns ouvidos, acho a paródia do título do filme de Bobbi Starr pontualmente interessante, “Ocupar/Occupy Meu Cu”, visitar esses lugares tão normalizados e normatizantes do corpo, incorporar de outra forma a nós mesmos e, por conseguinte, o mundo que, irrepetível, se movimenta conosco. Ocupar o cu, a virilha, entre os dedos dos pés, as axilas, as narinas, a uretra, o útero, os testículos, os mamilos, as unhas, os pelos, os cabelos, e como nas ações micropolíticas ir tocando aos poucos um corpo ampliado, as roupas, os adereços, os cosméticos, os produtos de higiene, o telefone celular, o computador, e com eles mais coisas que tocamos e que são corpo, a internet, os jogos videogames, a moda, a saúde e higiene, e mais, a comunicação, a circulação de informação, a abertura a discussão, o respeito a diversidade, o consumo, a divisão de renda, os modos de produção, a autonomia criativa, as políticas nacionais, e mais e ainda corpo, a ética da diferença, a democracia, a política dos afetos, o viver-juntos. Ocupar o cu, ocupar o corpo, (poder) aprender como ocupar o corpo de outra forma, reivindicar as minorias do corpo, projetar outros conhecimentos do nosso corpo, para que percebendo o processo que somos possamos perceber do que é composta a carne das macropolíticas, porque queremos ser em multidão e não mais em massa, porque o ódio e violência racial e de gênero são uma paisagem tolamente rabiscada por quem não conhece, ou não foi permitido conhecer, o próprio cu que é mundo.
De gordura e obscenidade.
Para ocupar esse corpo, que é meu e do mundo, procurei a performance arte, essa duna móvel tão fluída em seus conceitos e capaz de coadunar e compor em tantos espaços. Na performance pude ocupar e investigar muitos “eus” que fui nos anos antes de digitar essas linhas, muitos “eus” que sou no esforço de me fazer ser nessas linhas, e muitos “eus” que desejo no devir daquilo que talvez veja de outra forma depois dessas linhas, muitos “eus” todos esse corpo que vive.
Criei a performance “Occupy The Fat”, pondo em questão o corpo do gordo tantas vezes assimilado como potência de fracasso pela associação a incapacidade de controle ligada a imagem do capitalismo, procedendo uma vinculação simbólica que se faz desde a especialização dos modos agrícolas e industriais de evolução na produção de alimentos cuja epítome, em termos de comercialização e consumo, se enxerga nos conglomerados de fast-food, até a emergência de um biopoder cujos modelos de beleza e saúde em constante reprodução nas propagandas e representações interditam a gordura ao espaço da epidemia, do cômico, ridículo, ou incapaz, e o gordo aquele que não se esforça o suficiente para ser o seu melhor eu.
Gordura saturada, gordura poli-insaturada, gordura trans. A gordura é outra forma de viver o mundo quando ocupada, quando sem culpa, quando saboreada. Se é falado coma menos, ou coma mais, estamos olhando para a gordura que se recusa a deixar de ser e é o espaço pornográfico da saúde, desconfortavelmente mais do que a fome que vitima tantos mais, que se torna obscena.
Explico-me neste caso partindo da lei brasileira, enquanto a pornografia se liga ao objeto produzido com fins obscenos, a obscenidade é uma dimensão mais ampla e é legislada como espaço de uma experiência interditada, por isso mesmo não constituindo produção pornográfica: ir a rua com um carro que grita pelos seus autofalantes gemidos e suspiros “insidiosos” de interpretação sexual pode ser crime passível de condenação de seis meses a dois anos por conduta obscena (questão tocada pelo segundo trabalho presente nessa mostra “Pornórgão3”).
Nesse sentido, enquanto a fome é obscena, uma dimensão de experiência, mais ampla e sobre a qual é legislada a interpretação da expressão obscena de acordo com a situação, existem fomes aceitáveis (privação de alimentos dos moradores de rua por falta de poder aquisitivo) e fomes não aceitáveis (privação de alimentos a um menor por seu responsável), a gordura é pornográfica, objeto de intenção desviada por parte de seu produtor e por isso sempre censurada aprioristicamente.
Entendam os leitores que meu intuito não é colocar o gordo por escolha e o faminto por contexto, ou o magérrimo por opção e o gordo por disfunção metabólica, ou o magérrimo e o gordo por disfunção alimentar, na mesma linha de compreensão, mas apenas estressar como é paradoxal o modelo de leitura que adotamos geralmente para mediar o olhar na direção destas situações.
Dessa feita, como é necessário ocupar a fome, estressar os pontos sob os quais insistimos em estabelecer sua existência dentro de um sistema político-econômico global, é preciso vermos de outra forma a gordura, base de um sistema de saúde e beleza que leva ao consumo e investimento pessoal em toda sorte de produtos, técnicas e procedimentos cirúrgicos.
Assim como a gordura deve ser uma escolha, uma experiência passível de ser ocupada como modo de ser no mundo, a fome eticamente deveria ser uma escolha, como nas investigações de Tatsumi Hijikata na Dança Butoh, ou nas greves de fome de Gandhi, com suas possibilidades radicais ligadas a outra esfera de presença no mundo. Veja-se que o que está colocado é que corpos diferentes, por escolha da diferença, não deveriam ser postos sob uma lógica de interdição em termos de sua imagem e experiência.
Não menosprezo a pesquisa e importância do campo da saúde para auxiliar a observar de forma mais clara certas escolhas que administramos em relação ao corpo em suas múltiplas instâncias, mas afirmo que é possível estar vivo, cheio de afetos alegres e saudável nos parâmetros da medicina ocidental, e ser gordo, e apreciar a gordura, e extrapolar sua forma óssea e muscular para moldar curvas e sobreposições desejáveis e singulares.
Aprender mais sobre a experiência e ativação do corpo, e com todas as informações e limites éticos, permitir ao outro escolher autonomamente a melhor forma de viver a singularidade da vida que lhe cabe, esses são os pontos que quis engordar nesse texto.
Retirando um campo de isolamento entre processo e objeto, corpo e experiência, modos de vida e de morte, e trazendo para a “cena” (situ-ação: ação presente e situada) e procurando investigar aquilo que nos contextos de tantas subjetividades se constitui como obscenidade, podemos nos tornar capazes de pornografar (no sentido de compor com o obsceno e articular a experiência de suas projeções e limites) outras éticas para ser em si e ser no/com/do mundo.
REFERÊNCIAS
BARROS FILHO, C.; MEUCCI, A. A vida que vale a pena ser vivida. Petrópolis: Vozes, 2010.
BARTHES, R. Como viver junto. Tradução de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
DELEUZE, G. Nietzsche a e filosofia. Tradução de Ruth Joffily e Edmundo Fernandes Dias. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1976.
DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia, v. 3. Tradução de Aurélio Guerra Neto et alii. Rio de Janeiro: ed.34, 1996.
NEGRI, A. Para uma definição ontológica da multidão. Revista Lugar Comum – Estudos de mídia, cultura e democracia. n.19-20, p. 15-26. jan./jun., 2004. (Número Especial: Modulações da Resistência).
PELBART, P. P. Vida capital: ensaios de biopolítica. São Paulo: Iluminuras, 2003.
1 André Bezerra é Mestre em Performance Arte pelo Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. É também performer integrante do Coletivo ES3 (www.coletivoes3.blogspot.com.br), residente em Natal, Rio Grande do Norte, junto ao qual é criador e produtor do Circuito Regional de Performance BodeArte (www.circuitobodearte.blogspot.com.br).
2 Avisamos ao leitor que não desconsideramos o fato de que dentro da indústria dos filmes pornográficos, dos ramos da comercialização e consumo do sexo nos modelos machista heteronormativos ou heterorepresentativos, que depõe o sexo como instância de dominação do corpo do outro, e não como mutualidade compositiva de desejos e prazeres articulados no nível de uma experiência de troca entre um e outro, uns e outros, residem focos de reprodução de toda uma ordem de exploração e submissão do corpo daqueles que atuam obrigador a desempenhar atos violentos contra o próprio corpo e vontade para satisfazer modelos pré-concebidos de representação para recebimento de seus cachês. Contudo não é esse o ponto que abordamos nesse texto ao nos referirmos ao filme em questão, mas propriamente aquilo que é colocado curiosamente em seu título.
3 Este trabalho em vídeo discute justamente as instâncias múltiplas de infiltração entre o que pode ou não ser considerado obsceno, partindo de vídeos de uma uretrotomia interna e colonoscopia amplamente disponíveis sem interdição etária na rede mundial de computadores e dos áudios de uma sequência de vídeos pornográficos também disponíveis amplamente na rede, mas interditados a acesso pela idade do usuário, este trabalho questiona quais são os limites de acesso ao corpo e em que graus a imagem do corpo adentra o espaço da obscenidade pública. O órgão apresentado no título diz respeito simultaneamente a seu significado direto dentro da estrutura dos exames videografados utilizados, e a ideia artaudiana do órgão como unidade mínima de poder e representação embutida no corpo pela vida.